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Não é do doutor, não!

  • Foto do escritor: Ley
    Ley
  • 19 de abr.
  • 4 min de leitura

Dorival havia acabado de guardar a moto. Bem que ele queria poder acrescentar: "na garagem". Mas não, não, guardava sempre sobre a calçada, mesmo, em frente à porta de casa. "É uma rua tranquila, não vão roubar", ele pensava; não roubavam mesmo.


Aquela noite, Val estava particularmente a fim de descansar na sua rede do Flamengo e terminar a quarta temporada da sua série favorita. E com razão: ia descobrir finalmente se Sam Jen-Yon iria aceitar casar com o espião norte-coreano que havia matado, por acidente, seu irmão. Só faltavam três episódios! Além do mais, a última entrega havia sido cansativa e muito satisfatória: Val tivera que entregar pizza em uma parte ainda inexplorada da cidade que ele tanto amava, e ele adorava explorar essas área novas. Estava realmente cansado e animado ao mesmo tempo. Perfeito para curtir sua rede e seu streaming.


Val não esperava, porém, receber uma notícia que iria irritá-lo um pouco (mais do que ele gostaria). Ao abrir seu Zap-Zap, em busca de alguma palavra de carinho de uma certa pessoa, ele se deparou com uma mensagem de seu cardiologista, Raimundo. "Sinto muito, Dorival, mas não posso entregar as informações que você me pediu. Estão guardadas lá na clínica, e não posso te repassar. O que você quer, exatamente, com essas informações? Quer um atestado ou alguma coisa assim? É só falar!".


Foi sobretudo a última frase que o irritou mais. É só falar! Ora, ele já havia falado. Não só; havia solicitado por escrito! "Solicito a cópia integral e legível do meu prontuário médico, sob a guarda do médico Raimundo de Sousa Soares"; como ser mais claro que isso? Havia assinado e tudo, com o número do RG e do CPF inclusive. Havia apresentado pessoalmente a solicitação, bem como o documento de identidade. O que mais o médico ou a clínica poderiam querer?


Jen-Yon que esperasse. Mas e a rede, tão convidativa..? Que fosse, ele queria resolver aquilo imediatamente. Não era possível. O que um entregador de comida precisava fazer para ter seus direitos respeitados? Lembrou-se, porém, de um caso que havia visto na internet, na época em que pesquisou sobre como obter uma cópia das suas informações de saúde sob a guarda de médicos. (Chamava-se "prontuário" o conjunto de tais dados). Havia a quem recorrer.


Redigiu, então, mensagem a Raimundo -- que gostava que o chamassem de "doutor", mas pelo visto não compreendia a legislação e o código de ética da própria profissão! Foi gentil, mas não foi bobo: "Boa noite, doutor. O senhor sabe que não preciso lhe explicar para que eu quero essas informações. Eu pesquisei na Internet, doutor, e o senhor não pode fazer isso, não. O prontuário pertence a mim, não ao senhor. Me negar essa cópia que eu pedi fere o Código de Ética dos médicos, doutor. Pode pesquisar. Eu vou aguardar mais cinco dias, é o suficiente para o senhor me entregar a cópia do prontuário. Depois disso vou abrir um B.O., vi que negar prontuário a um paciente é crime contra o consumidor." Felizmente, Val não deixava que passassem por cima dos seus direitos. Entregador de comida, táxi, médico, juiz federal, não importava; todos eram iguais para a lei. E Val gostava de saber dos seus direitos. Não era só para ver a Jen-Yon que ele pagava a sua amada Internet!


Ele podia até não saber articular em palavras todo aquele juridiquês que encontrava às vezes na Internet, mas ele sabia que o prontuário era dele. E não precisava dar satisfações! O médico que se virasse para conseguir a cópia do prontuário e entregá-la a ele, já que havia escolhido essa profissão. Enquanto ponderava sobre essas questões, Val ficou mais calmo, e se lembrou da sua rede e da sua série. Foi preparar a pipoca.


No dia seguinte, o alarme do celular toca às cinco da manhã, como de praxe. Val mal acredita na mensagem que lê, ainda por meio do painel de notificações: "Sr. Dorival, a cópia do seu prontuário estará disponível amanhã na recepção da clínica. Pedimos descul...". Nem se dá ao trabalho de abrir a mensagem para ler o resto. Feliz da vida, começa a arrumar para mais um dia na cidade que tanto adora.


Legislação aplicável

  1. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (lei No13709/2018, a LGPD), no

Inciso IV do seu Art 6o, determina que as atividades de tratamento de dados pessoais deverão

garantir aos titulares consulta facilitada e gratuita sobre a integralidade de seus dados pessoais;

  1. O Art. 72 do Código de Defesa do Consumidor (lei 8078/90) determina ser crime contra as relações de consumo a prática de impedir ou dificultar o acesso do consumidor às informações que sobre ele constem em cadastros, banco de dados, fichas e registro;

  2. A Lei 13787/2018, em seu Art. 6o, estabelece o prazo mínimo de 20 (vinte) anos a partir do último registro, para os prontuários em suporte de papel e os digitalizados poderem ser eliminados;

  3. A Resolução CFM 1638/2002, em seus Art. 1o e Art. 2o, define prontuário médico e determina a quem cabe a responsabilidade por ele;

  4. O Código de Ética Médica (Resolução CFM 2217/2018), em seu Art. 87, veda ao

médico deixar de elaborar prontuário legível para cada paciente;

  1. O Código de Ética Médica (Resolução CFM 2217/2018), em seu Art. 88, veda ao

médico negar ao paciente ou, na sua impossibilidade, a seu representante legal, acesso a seu prontuário, deixar de lhe fornecer cópia quando solicitada, bem como deixar de lhe dar explicações necessárias à sua compreensão, salvo quando ocasionarem riscos ao próprio paciente ou a terceiros;

  1. A Resolução 148/2011, do Conselho Regional de Medicina da Paraíba, e o

Parecer 2790/2019, do Conselho Regional de Medicina do Paraná, dão instruções adicionais a respeito da entrega de cópia do prontuário médico.


 
 
 

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